[ MEMÓRIA MÍNIMA ]
Cada um tem sua mensagem particular para o dia das mães, a mensagem que tente traduzir todo o rebuliço que está por dentro, em relação à maior de todas as ações e de todos os amores, à simbólica maior da vida. Lá se vão completar oito anos que mamãe partiu, justamente no mês de maio.
Hoje me aproprio mais de um poeminha de Murilo Mendes que só é lembrado quando se fala das escolares vanguardas europeias, como exemplar vivo do surrealismo. Mas não sabemos as circunstâncias íntimas de Murilo, se tudo era apenas brincadeira de vanguarda ou se algo fazia outros sentidos lá dentro:
Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou-se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, para ninguém!
Cai no álbum de retratos
(Pré-história. Murilo Mendes)
Quando minha mãe faleceu, sob circunstâncias dolorosas, foi rodeada pela maioria meus irmãos, os que puderam estar presentes, dos 15 vivos. Mãe, super-mãe, talvez tenha sido feliz em poucos dias de sua vida, mas nunca deixar de sorrir para seus filhos, de dividir amor até o último.
Naqueles dias, eu estava em São Paulo, e não pude estar no funeral. Incrível que antes de saber de sua morte, fui ficando mal até culminar com dor de cabeça e mal-estar que me fez ficar na cama por dois dias. Foi nesse intervalo de tempo que eu soube, e aquele remorso de não estar presente para vê-la uma última vez ficou remoendo, ecoando.
Foi quando explodiram algumas partes do meu poema Memória Mínima, às quais depois dei caráter menos íntimo, porque as mães são mães de muitos e se tornam universais, uma memória que, mínima em seu valor, se partilha com o íntimo de tantos.
É assim, que, neste dia, tenho dolorosamente este poema a publicar.
[ MEMÓRIA MÍNIMA ]
O diálogo com os mortos não deve ser interrompido até que eles entreguem o quanto de futuro foi enterrado com eles.
Heiner Müller
Toda pessoa deveria então falar de suas estradas, de suas encruzilhadas, de seus bancos. Toda pessoa deveria fazer o cadastro de seus campos perdidos.
Gaston Bachelard
Volto a Comala
Um mulo pasta
nos pavilhões do silêncio
Trago a criança
que não está ali
entre as salamandras
Um saco nas costas
Derramo os brinquedos
entre as libélulas
“Mãe, olha o
Lava-cu!” aponta o bêbado
minha irmãzinha
Meu pai deve ser
o breve vaga-lume
que guardei na caixinha
Mamãe está morta
Da missa de 7 dias
só sobram os sinais wireless
Recordação
trazendo a fuligem
vila dos confins
Puxada a embira
da memória mínima
solta os fiapos
no entardecer
*
Salpicando as portas
com sua luz
as casinhas onze-horas
pontilhadas de sol
um dia hei de começar
a limpeza dos túmulos
As onze-horas
abrem-se
como se voltassem
hoje de novo
ao meu clarão
uma foto em monóculo
nos deixa esquecidos
somos lá dentro
florzinhas tênues
de carmim
de amarelo
de
manchas brancas
Mamãe ultrapassa
velha fotografia
dorme quase em mim
no terreno baldio
“Não podemos partir
de olhos fechados”
*
Quando vínhamos da casa de nossa bisavó, noite adentro, o vento vibrava forte, as lamparinas se apagaram e os vagalumes caíram nos baixios encharcados. Viramos lagartas-de-fogo no breu infinito
Cipós-de-boi e embiras esfarrapadas
ficamos pendurados balançando no ermo
Vínhamos de algum festejo ou de algum enterro?
Nosso primo Lelê tinha dado derrame
As lagartas-de-fogo, nos beirais das casas, embrenhadas na erva molhada na beira dos caminhos, costumam pontilhar de altares barrocos e anjinhos descaídos a escuridão da noite
As lagartas-de-fogo assemelham-se aos vagalumes, mas são espinhentas e não voam perfazem a terra enevoada, no charco fervilhante dos tempos chuvosos e antigos, mas só aparecem quando o aguaceiro dá trégua aos bons dias, e o céu limpo pode dar as caras com suas faíscas olhudas e fantasmagóricas. Lagartas-de-fogo são coriscos cintilantes resguardados como espectros para o extremo da solidão ………………………………………………………………………………………………………………………………
Ao deitarmos, aguardávamos a queda
Os cães vendo as trevas cortadas por chicotes luminosos
nos terríveis temporais
embiocavam-se nos cantos resguardados da quase inexistência
Não tossir de respingo
*
Mamãe deixou para soluçar depois, mas estava feliz, porque o mundo ainda nos queria mais uma vez.
*
Jumento arcaico na velha estrada atravessando menino no meio dos jacás
Barreiras altas de toás e pedras choram raízes despencando arbustos ramas de batata-de-purga maracujá brabo melões de
São Caetano
“Não volta de noite por essa estrada velha”
*
Mamãe se bandeava arrastando a gente pelo braço
Mamãe mamãe levanta
já não sei partir
de olhos fechados
*
As mulheres amanheceram
que já é domingo
pelos varais
Tem uma picape
zinha de madeira
sobre o formigueiro
escorando o lapso
tombado
nos artefatos
lembrar é do passado
o presente carrega
armas alertas
Ao tempo pertence
todas as cangalhas
quebradas de Comala
Ouço a voz do mundo
dos morros de Comala
enfrento
as carcaças
(Antonio Aílton. Compulsão Adridoce. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.)
*Imagem 1 (pintura mãe-filho-colo: https://www.ritaaleluia.com/educar-com-pnl-15-pressupostos-chave/
Imagem 2 – capturada de br.pinterest.com (13/05/2018)
Imagem 3 – Pinacoteca-Ouro-Preto-1960-Alberto-da-Veiga-Guignard
Imagem 4 – Capturada de br.pinterest.com (13/05/2018)
Your WordPress.com password
https://www.escritas.org/pt/roleta
https://www.escritas.org/pt/roleta
https://www.escritas.org/pt/roleta
has changed for antonioailton.
https://www.escritas.org/pt/roleta
Your old password will no longer work. Please update any records you may have and use the new password in the future.
If you did not request this password change please check with anyone else who has access to your account. If in doubt, contact WordPress.com support.
<a href="http://https://www.escritas.org/pt/roleta“>
Emocionado. Uma lindeza de poema.
É tudo tão denso e de uma “tristeza bonita”. Do Murilo Mendes aos quadros fazendo moldura para o teu poema.
“Um saco nas costas/ Derramo os brinquedos/ entre as libélulas”
Em mim, coube tanta coisa nestes versos.
Obrigada pela oportunidade de ler tudo isso!
mais uma vez me fizeste chorar mano . desta vez, semelhante a algumas horas antes de mamãe partir,
senti que algo estava acontecendo, entrei naquele banheiro escuro e úmido do hospital e chorei como nunca avia chorado antes, semelhante aquele dia só hoje. quero te parabenizar mais uma vez pelo poema, e também por ter mencionado Lelê nosso primo lembro-me que gostava muito de brincar com ele nas caeiras de carvão,
o curso da vida é engraçado quando crianças queremos crescer e quando adultos vemos que eramos felizes e não sabíamos . (parabéns)
Lembrou-me de longe talvez morte e vida Severina. Mas também me lembrou situações em que por empatia me vejo imaginando o que a pessoa morta diria aos que ficaram: eu estou bem. Eu no lugar de uma mãe que se foi voltaria ainda que uma vez só para dizer: não chore eu estou bem.