Recolha/seleção de poemas feita por mim e publicada no SUPLEMENTO CULTURAL E LITERÁRIO JP GUESA ERRANTE, ANO X, Edição 281, 08 de setembro de 2012, p. 10 e 11. Publicado também na seguinte página virtual: http://www.guesaerrante.com.br/2012/9/27/painel-da-poesia-contemporanea-nos-400-anos-de-sao-luis-4401.htm (Na página virtual não consta de quem é a seleção)
ALGUNS POEMAS REPRESENTATIVOS
LUÍS AUGUSTO CASSAS
EPIGRAMA PARA UMA MANHÃ DE VERÃO
Se por amor ou justiça, um dia eu brilhar,
Na constelação a que me endereçaste,
que eu não reluza como o sol do meio-dia,
que embora forte, ofusca e a muitos faz cegar,
mas resplandeça qual a luz de um sol de aurora,
fogo fátuo que a tudo e a todos propicia,
e em cuja luz, tênue e clara, dela ninguém foge,
a não ser a inútil sombra da poeira das estrelas.
Liturgia da Paixão (Opus da Compaixão), 1997
ROBERTO KENARD
A FAMÍLIA
Tem alguém no telhado
Talvez a avó louca
Embriagada de tiquira
Tem alguém no telhado
Possível o neto
Esperando a lua
Tem alguém no telhado
Provável o gato
Com medo dessa família
No meio da vida, 1980
RAIMUNDO FONTENELE
O OTÁRIO DO GÓLGOTA
Sexta-feira 12h30
Começo a fraquejar diante de tanta fome
À espera de ser traído
Um Judas sairá das sombras
Pra me fuzilar por causa de 30 dinheiros
Lembro a infância à beira d’água
Num Jordão-Mearim feito de lágrimas de
mulheres piedosas
Abundantes, generosas
Madalena, pobre moça do cântaro
Verônica, com seu lenço perfumado
E Marta, a que me ensinou o pecado
Eu, o cristo enferrujado
Numa cruz de carne e sangue
É a hora Terça, quando devo gritar por socorro
Chamar por meu pai.
Mas, só digo “help”, “money”, “goodbye”
Marginais, 2001
LAURA AMÉLIA DAMOUS
OFERENDA
Venho te oferecer meu coração
Como o cansaço se oferece aos amantes
o suor aos corpos exaustos
depois de definitivo abraço
Venho te oferecer meu coração
como a lua se oferece à noite
e o vento à tempestade
Venho te oferecer meu coração
como o peixe se oferece à captura
no engano do anzol
Cimitarra, 2001
J. M. CUNHA SANTOS
FÁBIO
Teus dias sem idade
tuas viagens nos pássaros
dos mamonas assassinas
A vontade de fugir
de ti para ti por dentro
as vozes partidas na tua cabeça
e um discurso de louco que não acabava mais
Assim lembro teu aço, teu osso
assim recordo teu pânico
comandando gangues sem pele
e sacando revólveres da imaginação
Um dia, Fábio,
Também terei idades e pânicos
também viajarei nos pássaros
ouvirei músicas e fugirei
para esse lugar em nós longe de qualquer um
Vozes do Hospício, 2008
CELSO BORGES
SUNSET 3
em frente ao sobrado
a tarde grita aflita seu pôr-do-sol
e reflete raios na grade de ferro forjado
que sustenta a parte de cima da porta
– restos mortais de um trapiche da Rua da Estrela
SUNSET 4
O Incêndio da Casa dos Lordes e dos Comuns
do outro lado do mundo
beira de um rio londrino
o pintor Joseph Mallod Willian Turner
toca fogo no fim do céu
no dia seguinte a tate gallery anuncia o leilão do pôr-do-sol
Belle époque, 2007
SALGADO MARANHÃO
O OURO DAS COISAS
Daqui destes becos
absolutos
luta-se
no fórum
do lítero,
onde o reles relativo
transcende
seus delitos.
Daqui destes estames (tramem
o Samadhi-ser: o nada náufrago
sob o Nadalume)
amanhece.
E quilhas vazam marés
aqui
deste Ashramaxé:
o imaginário
templo
de maravilhas.
Que a palavra solavanque
o ouro das dez mil coisas
(A Luís Augusto Cassas)
Sol sanguíneo, 2002
FERNANDO ABREU
HOMEM COMUM
Para o inglês W H Auden
escrever poesia era lembrar a si próprio sua condição,
porque antes e depois do poema não tinha tanta
certeza
de ser poeta.
O brasileiro Ferreira Guliar diz que só às vezes
é o poeta Ferreira Guliar. Ou seja,
nos momentos em que o clarão do poema
ilumina sua face.
O galês Dylan Thomas vociferava seus metros
direto no ouvido de Deus,
segundo ele próprio, para a glória
de Seu nome e em louvor do Homem.
Quanto a este que afirmam ser eu,
é só mais um homem comum,
vergado ao peso da coragem que inventa.
Comum, quando as engrenagens do
poema rangem dentro de seus ossos,
ao ponto em que é preferível escrevê-lo,
embora nada no mundo dependa disso.
Comum, quando por dentro tudo é deserto,
e ele se perde na multidão,
que também disfarça
e espera.
Aliado involuntário, 2011
PAULO MELO SOUSA
SABENÇA
na sozinhez das metáforas inexatas
um bicho doido assopra perplexidades
mordendo os calcanhares da imemória
no casulo pânico das palavras incriadas
lambendo a espumosa baba do sol
a cada coice dos impropérios da morte
viver no sonho incrédulo da criatura
é abusar da paciência de Deus
Banzeiro, 2010
RONALDO COSTA FERNANDES
CHURRASCO
Da minha janela, vejo fornos crematórios.
As pequenas chaminés se sucedem como um i sem pingo.
Da fumaça que lhe escapa
há rumor de tédio, carne e sal grosso.
Durante a semana os campos de concentração,
que são quintais,
se mantêm vazios e sem prisioneiros
além das árvores inúteis
que parem sem que ninguém as olhe.
Nos fins de semana,
começa o sacrifício de bois e rins
e a fumaça se evola, em suas cólicas
cinzas, a passagem das horas,
o riso grotesco dos feriados,
o ritual de queima e álcool,
a embriaguez da vida
cuja ressaca é a morte.
A máquina das mãos, 2009
ALEX BRASIL
NAVALHA
O menino nasce no fio da navalha.
A navalha fome fere o menino.
A navalha rua rói o menino.
Na navalha dor dorme o menino.
A navalha nega o menino.
A navalha poder pune o menino.
O menino cresce entre mortalhas,
e no fogo dessa fornalha,
o menino faz-se navalha,
lâmina sem piedade
na minha, na tua carne,
na carne da sociedade.
Todas as Estações – Antologia Poética, 2003
SONIA ALMEIDA
VIAGEM
Coloco a palavra na asa do poema
e faço o que mais quero:
vou na asa da palavra
vôo na alma do verso
e, sempre que preciso,
flutuo nas (a)venturas do signo.
Penumbra, 2003.
DYLERCI ADLER
COBRANÇA
Cobro-te
cobras-me
cobra venenosa
com veneno fatal
cobro-te
quando me cobres
com teu corpo
enroscado
tipo cobra
no meu corpo
intumescido rígido sensual
Crônicas & Poemas Róseos-Gris, 1991
CHAGAS VAL
RELVAS
O luar alvíssimo se tece entre as verdes cortinas de árvores
e trêmulo, ouve-se-lhe um terno sussurrar de folhas
fremindo
como estrelinhas cadentes em uma contínua iluminação
de límpidos espelhos
entre as fissuras de folhas ou nos finos folíolos da relva.
Escritura do silêncio, 2009
RITA DE CÁSSIA OLIVEIRA
O EQUILÍBRIO
O equilíbrio foi gerado por Hércules e Minerva. Falou-me o sábio.
A força e a sabedoria se enlaçaram na mais sublime relação,
dando origem à geração do equilíbrio.
Pouso da alma que não pende frente ao vendaval.
Ponto no espaço que ancora o tempo na vastidão das
existências e mortes registradas no livro de São Jerônimo.
Do alto do Senado, o ancião julga as vidas e as mortes que se
prolongam nas existências…
Quem somos?
Somos a soma e a divisão na eternidade.
Somos a multiplicação e a subtração no mundo temporal.
A sombra que escurece parte da terra não detém a nossa figura,
que se traça na passagem das portas da geração, da degeneração e da morte…
Poíesis, 2007
LÚCIA SANTOS
FAÇANHA
eu não nasci com estrela na testa
eu não subi o monte everest
nem cruzei a seco o sertão do agreste
no meu talento
a playboy não investe
nem a seleção do reader’s digest
nunca rezei terço como irmã dulce
eu não atravesso o rio nilo a nado
nunca cantei fado
como a bem fadada amália
eu não sou amélia eu não sou adélia
(se bem que pasto no mesmo prado)
eu não sei direito a idade da loba
eu não peito para alimentar
R ô m u l o e R e m o
eu não vou entrar pro livro dos recordes
nem robert redford dormirá em meu leito
a poesia é meu grande defeito
Baton Vermelho, 1988
COUTO CORRÊA FILHO
AS BANDARILHAS
As bandarilhas arpoam a vida
e de par em par a esperança.
Tenebrosos punhais de Espanha.
As bandarilhas invadem a carne
e hasteiam-se como marcos de conquistas.
Terríveis pavilhões da morte.
As bandarilhas abrem sulcos no couro
e dançam a tragédia do touro.
Dolorosos pingentes fúnebres.
As bandarilhas tremulam na tarde
e se esfriam adereçando o fim.
Duras hastes de metal e papel de cor.
XIII Antologia poética Hélio Pinto Ferreira, 2001.
EDUARDO JÚLIO
ALGUMA TRILHA ALÉM
encontro com um passo
que perdi há sete anos
ele reconhece em mim
o seu passado e passa
volto para casa
com a solidão dos sapatos
Alguma trilha além, 2005
JORGEANA BRAGA
THE END
Tem uma serpente
Correndo aqui atrás
Como a minha mãe
Cuspo o meu pai
Cerca viva, 2011
ROSEMARY RÊGO
PEDRAS
A dor que lambe
os ossos
já não é
mais
como a
agonia
dos loucos
Como a solidão
das pedras
a dor que lambe
os ossos
se encaixa
na célebre
canção dos dias.
A dor que lambe
os ossos
é como o suor
do espírito
carne que surge
do amanhecer
é como um gozo atormentado
de ser poeta,
a dor que lambe os ossos
agora é feita de pedra
e cal!
O ergástulo gozo da palavra, 2004
GEANE LIMA FIDDAN
ARES DE PEREGRINA
Saturada de pencas e brocas
de Upaon-açu
parto para as andanças
cachos das manifestações
no toco desse pendulo de bacaba
a calma cheia do trágico
que fecunda a alma
desabrocha no agente de argila
sai de fininho sem tino
embarca na busca do inédito
desembarcando nas panturrilhas
de Rodin
aparentemente
só aparente
mente
são fúrias de um vulcão
vagalume nordestino
circunvagando na cidade luz
não se surpreende
quando uma certeza pinta
um pára-brisa
arrasando anda
passageiros desandam
Argos da matéria, 2011
DYL PIRES
SOTERO
Um homem solitário. Nunca o percebi para além dos hábitos. Pela manhã dos gatos cuidava. Ao entardecer o pôr do sol lhe ocupava. Um dia, os gatos morreram. E para se recompor começou a tecer bolsas e tapetes felpudos como os gatos, belos como o olhar deles; agora reinventados no sol que espiava. Outro dia o vi mancando. Numa solidão que excedia a ausência de uma bengala. Pela primeira vez me comovi com sua solidão. Acordei para o que nele era falta. Acordei para os seus imperceptíveis rituais de ausência. Ele me sorriu.
O perdedor de tempo, 2012
BIOQUE MESITO
VANGUARDA DE HÉCATE
entre vírus e computadores
guerras e bebés de proveta
aproveito para compreender a vida
ouço piano leio livros assisto à televisão
nos jornais a novidade quase extinta
entre importados e sem importâncias
softwares ou luas de sábado
questiono a vida do meu jeito
atrás do atraso a ciência
no café da manhã o capitalismo
entre dogmáticos e crianças prodígio
parafernálias e clones do século novo
aproveito para descrever meus mitos
A anticópia dos placebos existenciais, 2008
RICARDO LEÃO
NO MEIO DA TARDE LENTA
É tarde.
É muito tarde.
É sempre muito tarde.
Mas agora
Eu te contemplo, cidade amarga,
Do alto de um edifício de vinte andares,
E vejo, com olhos cansados e tristes,
O teu úmido horizonte, calmo e lúcido,
Castigado de muitos antigos sóis,
Carregando nas mãos tremas o maxilar roído
De teus ilustres e insignes ancestrais,
E também de muitas outras tardes e eras,
Enquanto me desloco sob o calor ardente e fáustico
De mais uma tarde em São Luís do Maranhão.
(…)”
No meio da tarde lenta, 2012
HAGAMENON DE JESUS
UM DOS CÂNTICOS DOS CÂNTICOS
Os que lutam com o Anjo
Estão no alto do Empire State Building.
São os que abrem o coração para Deus
Os que lutam com o Anjo
Estão mais alto que o Edifício Empire State Building.
São os para quem foi escrito
“Que o amor é uma guerra perdida”
Os que talvez se matem.
Mas ardentes e comuns, senhores só do Sol
Da incerteza de Canaã,
Ainda caminham ombro a ombro.
A queda é uma chance.
Mas que não se enganem e/ ou perturbem
Se, eternamente,os olhos de Prometeu estejam bicados
(a impermanência é sempre a questão
Do sangue no azul, é o alimento da Eternidade).
Que não se enganem e / ou perturbem
Com os olhos de Édipo nas TV’s,
O silencio da arca cheio de objetos, e os arcos
As alianças, com aquilo que não vêem ,
O amor
Ainda arde, em arco íris, no coração do CD’s.
Os que lutam com o Anjo
Estão no alto, no vértice do Empire State Building:
E cantam.
A queda é uma chance.
Mas também o beijo,amor,o vôo
The Problem, 2002
ANTONIO AÍLTON
O JARDIM DE PO CHÜ-YI
Dizem aí que Fulano é um grande poeta
que tem estilo, e até consegue imitar
a si mesmo, para conservar sua marca
Que é como Picasso depois de Les Demoiselles
Quanto a mim, sei que meu pequeno jardim
não é como o das grandes casas de portões vermelhos
dos poetas que olham desdenhosos o outro lado
do bulevar
Não é como os planejados para a entrada dos grandes colégios
nem como os que embelezam ainda mais os fluxos do sol
que rebatem nas vitrines das grandes empresas
Em meu pequeno jardim, eu sei, há flores
grandes e minúsculas, coloridas e tristes, às vezes
perfumadas
e há também flores falsas como é natural das plantas
flores enjambradas e ervas daninhas que tenho preguiça
de tirar, ou não sei como
então deixo aos poucos amigos quando vêm beber vinho
olharem e dizer: “ô, isso cresceu aí…”, e respondo:
“foi mesmo…”
Então vamos beber um pouco mais de vinho, e aponto
uma velha espreguiçadeira herdada de Po Chü-yi
poeta mais sábio que todos nós juntos, e que após ouvir
o alaúde
perguntava:
“Por que suspirar por grandes terraços, açudes
quando um pequeno jardim é tudo quanto basta?”
(Compulsão agridoce, inédito )
MORANO PORTELA
DENTRO DO DIA
Sol e marulho
No meio da rua
No meio do dia
No meio da vida
Onde se cavam cavam
Entre humanos abismos
Abismos abismos
De linguagem vazios
Na asa turva da vertigem, 2010
DANIEL BLUME
IMPUREZA
Esgotam-se as palavras,
o descobrir, não.
Agora o dizer finda,
entregue ao cansaço
e à impaciência.
Dizem:
é a maturidade.
Silêncio.
A criança dorme.
Inicial, 2009
JOSUALDO RÊGO
SOUSÂNDRADE
Aqui erguemos nossa lírica,
sem o coloquial,
sem o resenhista de plantão.
Aqui arquitetamos nossa ruína,
em casebres e palafitas à beira-mar,
nesta carinhosa decadência.
Aqui o pássaro mora longe,
invisível e sorrateiro.
Variações do mar, 2012
SAMARONE MARINHO
O PALACIO DOS LEÕES
dá-se um punhado de dores
aos miseráveis incautos
no quintal do palácio
a legião de templários
vê a ave picotar
os vestígios das sombras
Incêndios, 2012
Reuben da Cunha Rocha
São Luís está em chamas / Não é hora para joguinhos literários
Não é hora para o artista se esconder / Palavras secretas e cânticos
Não dão mais em nada / Chegou a hora de arder /
Arder e gozar
Revista Pitomba v. 1, 2012